Recentemente acompanhamos a polêmica criada em torno do PAAES (Programa de Ação Afirmativa de Ingresso no Ensino Superior) em que estudantes de escolas da rede privada de ensino que realizaram as provas do processo seletivo do programa conseguiram garantir suas matrículas através liminares concedidas pelo Poder Judiciário, o que feriu uma das orientações do programa que visava destinar suas vagas para estudantes oriundos das escolas públicas (o que representa 25% do total de vagas para cursos com entrada anual e 50% das vagas dos cursos semestrais).
O fato gerou indignação de pais e estudantes de escolas públicas que em suas expectativas de garantir a conquista de uma vaga em uma Instituição de Ensino Superior Pública foram prejudicados em uma ação movimentada por empresários e pais de estudantes das escolas privadas. Desde então acompanhamos mobilizações de secundaristas e debates acalorados na UFU que em nossa opinião remetem para uma questão mais ampla: a situação do ensino superior público no Brasil e suas formas de acesso e democratização. Por que isso é amplo? Porque esse episódio nos remete a um esforço para entender questões que vão desde aos problemas de ordem pedagógicos, sobre os sistemas de ensino no aumento das oportunidades e desigualdades sociais e seu relacionamento com o setor produtivo, passando por questões sobre o quotidiano gerencial das universidades, às possibilidades e limites das formas dos processos seletivos, o papel do governo, do setor privado e do mercado, etc.
Nesse sentido apresentamos uma contribuição de nosso coletivo para o debate na tentativa de somar esforços para criar soluções e alternativas para problemas como esse gerado por um sistema de ensino brasileiro que ainda continua desigual e excludente.
Qual o cenário em que nosso sistema educacional foi estruturado?
Sabe-se que a Educação no Brasil de maneira geral é marcada pelas desigualdades sociais e econômicas que assolam a maior parte de sua população. O que isso quer dizer? Quer dizer que a Educação não é uma esfera autônoma e distinta do que acontece sociedade e no caso do Brasil que é um país marcado historicamente pelo colonialismo e desenvolvimento dependente da ordem econômica internacional ela torna-se reflexo de uma sociedade aplacada por um profundo abismo na distribuição de renda. Só para se ter uma idéia a concentração de renda no Brasil registra dados em que 10% da população mais rica do Brasil detêm 75,4% de todas as riquezas do país.
O impacto no acesso a uma educação e com qualidade é clara e tem sua origem na configuração sócio-econômica brasileira apresentada em um de seus aspectos (a renda) anteriormente. Praticamente isso significa que quem tem mais recursos a disposição consegue ter acesso a uma educação e formação com patamares mais elevados e qualificados. No senso comum sabemos que isso se refere ao acesso a uma educação nos seus níveis fundamentais e médios em instituições da rede privada (pelo elevado grau de sucateamento que as escolas públicas se encontram) e no caso do ensino superior o acesso as (ainda) renomadas instituições públicas de ensino superior que devido à grande demanda selecionam por meio de seus processos seletivos (meritocráticos) um seleto grupo que condicionalmente está ligada a uma preparação que as escolas públicas encontram-se muita das vezes em desvantagem com as escolas privadas.
Nas últimas décadas observamos uma ampliação da demanda da população pelo ensino superior. Isso se deve a ampliação do ensino secundário que acompanhou o conjunto de transformações econômicas da sociedade brasileira e de seu mercado de trabalho sob os marcos do ideário neoliberal que frente ao aumento crescente do desemprego entre os jovens fomentou o apelo social que relaciona a educação com garantia de empregabilidade.
Na década de 1990 a elevação do número de estudantes no ensino superior brasileiro foi relevante (uma alta de mais de 70% somente no período de 1992-1999). Ao mesmo tempo a tendência a sua elitização também acompanhou o crescimento onde a participação dos 20% mais ricos subiu de 67,1% em 1992 à 70,7% em 1999; enquanto a participação dos 20% mais pobres que era de 1,3% ficou reduzida à 0,9% nos anos respectivos.
Outro movimento relevante para nossa reflexão é a expansão quantitativa do ensino superior, infelizmente apoiada no fortalecimento do setor privado como pode ser visto no gráfico abaixo:
Isso nos mostra que o aumento do ensino superior brasileiro (tão propagandeado pelos governos FHC e Lula) está relacionado com o avanço da política de mercantilização da educação, tornando-o um serviço em que somente pode ter aquele que pode comprar e pagar, ou seja, o direito (garantido inclusive por nossa Constituição) acaba se tornando em algo que poucos podem ter acesso. Para evidenciar isso atentemos para esses outros dados: na faixa etária entre 18 e 24 anos (considerada apta para ingresso no ensino superior) 12,1% dessa população encontram-se matriculados em algum curso de graduação (Inep, 2007) onde 74,1% das matrículas estão no setor privado, enquanto apenas 25,9% estão em instituições de ensino superior públicas.
Ter acesso ao Ensino Superior é uma questão de escolha?
Esse corte de classes na realidade do ensino superior brasileiro também repercute nos mecanismos de discriminação, como por exemplo, na diferenciação social de cursos e carreiras. O que isso quer dizer? Certos cursos têm seu público formado essencialmente originado de escolas públicas, enquanto que outros ocorrem situação inversa. Cursos que tem certo “prestígio social” como Medicina, Engenharias, Odontologia, Direito e outros acabam tornando-se mais concorridos privilegiando o acesso aquele aluno que tem maior preparo. O cálculo social para chegar a esse resultado já sabemos e foi demonstrado anteriormente. Evidencia-se então a intensificação da seletividade social na escolha das carreiras. Mas após tudo o que foi apresentado será mesmo que se trata de uma questão de escolha de carreiras?
Se consideramos as condições relativas à renda familiar, setor de ensino (público/privado), turno onde realizaram o ensino médio e a preparação em curós pré-vestibulares, verificamos que são as determinações sócio-econômicas que influenciam na escolha do candidato. Para muitos não se trata de uma simples questão de escolha, mas uma necessidade de adaptação as condições materiais de vida. Podemos citar exemplos muito bem conhecidos por nós estudantes como aqueles jovens que tentam conciliar sua formação com o trabalho. Escolhem um curso menos competitivo que permitam continuar trabalhando onde muitas das vezes partem da necessidade de garantir seus estudos e ao mesmo tempo complementar uma renda que a sua família de origem não pode se furtar caso o estudante se dedique integralmente a uma formação acadêmica.
Já não bastassem essas dificuldades colocadas para muito jovens brasileiros temos ainda a expansão do comércio dos cursinhos pré-vestibulares que aliados a esses problemas já apresentados, aprofundam a elitização do ensino superior público brasileiro. É o que se expressou no caso do PAAES e que faz parte dessa dinâmica em que tentamos apresentar alguns de seus aspectos importantes.
Ao entrar na universidade....
Os jovens oriundos de estratos mais populares que conseguem chegar à universidade pública ainda enfrentam obstáculos que se referenciam na sua inserção social combinadas com sua desigual formação escolar. Os problemas são relacionados às dificuldades desses jovens em garantir sua permanência na universidade seja pela necessidade de enfrentar as lacunas de seu processo de formação nos ensinos fundamental e médio, seja na dificuldade financeira para se garantir seu cotidiano acadêmico com refeições, fotocópias, aquisições de livros,etc. Mais uma vez observamos que as condições materiais e socioculturais entre os estudantes, agora dentro das universidades, produzem diferenças objetivas e simbólicas relevantes entre os estudantes. Por exemplo, estudantes que são discriminados pelos seus próprios colegas e/ou professores pelos problemas gerados nas dificuldades acima apresentadas.
Para solucionar isso é necessária uma política de assistência estudantil forte e eficaz que garanta condições equânimes de permanência para esses estudantes. Trata-se de serviços oferecidos sem nenhum impedimento/restrição a bibliotecas com acervo que atenda a demanda, a um refeitório acessível, a cotas de “Xerox”, acesso aos meios digitais, bolsas de estudo para todos(as), creches para filhos(as) de estudantes, moradia estudantil para aqueles(as) que são de outras localidades e não podem pagar aluguel, etc. Infelizmente isso ainda não é garantido efetivamente nas universidades brasileiras, onde as poucas conquistas nesse campo se dá graças as lutas do Movimento Estudantil.
Mas e o Governo? Qual vem sendo seu papel nos últimos anos e como ele age em relação a isso tudo?
A reestruturação do sistema de ensino superior brasileiro e seus impactos nas formas de acesso.
Para pensar a situação do Ensino Superior no Brasil, não podemos deixar de lado as estratégias político-ideológicas que a hegemonia neoliberal impõe sobre ele. Contemporaneamente observamos a apropriação perversa de históricas bandeiras de lutas progressistas. É o que chamamos de uma “hegemonia às avessas” construída pelo atual governo (Lula e Dilma). Políticas pretensamente “inclusivas” ocultam sua natureza nefasta e regressiva. Devem-se levar em conta que o chamado processo de “modernização” do MEC coincide fundamentalmente com as diretrizes convencionadas pelo Banco Mundial, BID e da CEPAL. As diretrizes têm como premissas: 1) a racionalização do acesso não por medidas universais, mas por cotas; 2) programas de gratificações por produtividades para estimular a docência; 3) vinculação entre os planos de desenvolvimento institucional com a participação da iniciativa privada; 4) avaliação padronizada da “qualidade” orientada pelo viés da teoria do capital humano; 5) avaliação e financiamento (financiamento por meio de contratos); 6) direcionamento do “mercado educativo” da instituição para o âmbito regional; 7) associação linear e estreita entre eficiência acadêmica e pragmatismo universitário.
No governo Lula a história começa com a criação de um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) que tinha como incumbência analisar a situação de ensino superior no país e apresentar um plano de ação. Os resultados apresentados “pintaram” um quadro fatalista e catastrófico do Estado brasileiro orientados pela idéia crise fiscal e uma suposta incapacidade de realizar investimentos. Iniciou-se então um processo de medidas acordadas entre o Brasil e os Organismos Internacionais para o PNE (Plano Nacional de Educação). Desta configuração surgiram os programas de Reforma Universitária (REUNI), PROUNI, SINAES, Leis de Inovação Tecnológica, ampliação dos cursos à distância e recentemente o projeto de Vestibular Unificado.
O Plano de Reestruturação das Universidades Federais, REUNI, é uma política educacional que tem como característica fundamental a flexibilização curricular e trabalhista, racionalização de recursos e ensino à distância como forma de “democratização do acesso” e de formação de professores, tendo como “pano de fundo” atender os interesses e exigências do mercado. Alguns de seus resultados criaram condições para a adoção de bacharelados interdisciplinares e cursos de curta duração (formando “tecnólogos”), com um crescimento “inchado” do ensino em detrimento da pesquisa e extensão, precarizando o trabalho docente e expandindo a universidade sem garantia de qualidade.
Por meio de uma estratégica publicitária milionária, o PROUNI se apresenta para o público como um revolucionário programa de inclusão de jovens ao ensino superior. Mas o que se revela de fato é que este programa repassa recursos públicos (com cifras expressivas) para as instituições privadas, por meio de isenção fiscal. Segundo a Andes–SN, o governo pode deixar de arrecadar R$ 4 bilhões em quatro anos. Com apenas um quarto disso, seriam criadas 400 mil vagas nas universidades federais em apenas um ano. O MEC estima que criará esse mesmo número de vagas em quatro anos de ProUni. Em suma, temos a oferta de cursos de baixa qualidade a um custo público alto que vai direto para as finanças da iniciativa privada, ou seja, mais uma vez a mercantilização do ensino avança sobre as IFES.
Em relação ao SINAES seu objetivo oculto é ajustar a educação superior brasileira às exigências de avaliação inseridas nos documentos emanados dos organismos internacionais. Supostamente um indutor do aumento da qualidade de cursos e fiscalizador das instituições particulares, o SINAES serviria, na realidade, para coagir as instituições de ensino superior a se adequarem ao modelo que está sendo implantado, impondo uma dinâmica competitiva e quantitativa.
Já as Leis de Inovações Tecnológicas acabam incentivando a criação de nichos privilegiados que recebem recursos para seus grupos, mas não para a universidade pública que cede espaço físico, laboratórios, equipamentos (o investimento mais oneroso) e os próprios pesquisadores. Existe ainda outro aspecto que garante a possibilidade de pagamento dos pesquisadores pelo seu envolvimento em projetos financiados pela lei, garantido que os recursos sejam destinados para grupos de pesquisas que despertam interesse das grandes empresas (Fundos Setoriais). Dessa maneira a Lei atrai pelo seu financiamento (renda extra) e ideológico convertendo o docente em “empreendedor” e “empresário”, cujo capital é o patrimônio público.
A mesma lógica neoliberal está presente nas pretensas propostas para acesso ao ensino superior. O novo ENEM que agora está ganhando verniz “democratizante” com o SISU segue de maneira muito competente as orientações de organismos internacionais como a OMC (Organização Mundial do Comércio) que orientam a liberalização e comercialização da educação por meio da estandardização das avaliações com a abertura dos editais de avaliação padronizada à concorrência mercantil.
O professor pesquisador Roberto Leher entende que as recentes fraudes no exame demonstram que a avaliação está deslocada da esfera educativa para a do dinheiro. A lógica reproduzida por esse processo de avaliação permite que a busca de lucros com a mercadoria avaliação crie brechas, pois no circuito mercantil o que é lícito e ilícito torna-se um ambiente sem barreiras e limites. O que o ENEM se transformou tem origem nas empresas nutridas pela política dos vestibulares. Até mesmo parte da concorrência (lucrativa) para oferecer o serviço terceirizado de avaliação tem fundações de direito privados nascidas nas próprias universidades públicas. O pesquisador ainda coloca uma pergunta pertinente: “qual a legitimidade desses consórcios e empresas que se engalfinham por dinheiro para avaliar o conjunto da juventude que concluiu o ensino médio e que almejam prosseguir seus estudos?”
Outro problema é a natureza de ingerência que o sistema de avaliação coloca para o conjunto das universidades públicas brasileiras. Mais dramático ainda é a submissão com que as universidades aderem ao projeto, às vezes condicionadas até pela promessa de algumas migalhas de recursos caso a universidade integre-se ao ENEM como instrumento de processo seletivo para ingresso. Em 2009 no Conselho de Graduação (CONGRAD) a UFU aderiu ao programa sem uma necessária reflexão crítica e nem debate mais ampliado com a comunidade universitária. Simplesmente abriram mão da autonomia didático-científica da universidade em prol do comodismo e/ou submissão as determinações oriundas do MEC.
O MEC justifica a razão da proposta encampada pelo ENEM/SISU por ser um instrumento mais democrático que busque privilegiar um exame que não seja estritamente conteudista e sim uma prova que privilegie o “raciocínio”. O que em nossa avaliação não acontece de fato, pois o debate precisa ser aprofundado na sua dimensão pedagógica que sinaliza mais um rebaixamento da agenda de estudos do que o contrário, o que pode ter conseqüências muito duras para educação básica. Seu impacto pode acarretar uma lógica nos currículos do ensino médio que podem fugir dos reais interesses da sociedade e atender aos interesses de grupos políticos/econômicos que estão por trás desse debate. O próprio atropelo do debate nas universidades públicas sobre a adesão ou não ao ENEM como processo seletivo a ser adotado nos sinaliza que o “buraco pode estar mais embaixo”.
Outra falácia que o MEC divulga acerca do ENEM/SISU é que por ele existe um maior leque de oportunidades de acesso e mobilidade para os estudantes uma vez por meio de seu processo seletivo unificado os candidatos poderão realizar suas “escolhas” em todas as universidades participantes do SISU. Na verdade é uma democracia mais formal do que substantiva. Inclusive essa concepção democrática está alicerçada em uma perspectiva liberal-burguesa que baseia seu princípio democrático na possibilidade de “escolha” racional e individual. O que vemos na prática é que se democratizam as inscrições (o que é inclusive perceptível pelos dados) com a ampliação do número de inscrições, mas ao preencher as vagas encontramos aqueles mesmos problemas que permeiam a realidade social dos candidatos. Na verdade o ENEM ainda continua privilegiando os estudantes de maior renda. Um estudante de Uberlândia que, apesar da nota elevada, não ingressou na Faculdade de Medicina da UFU (pela sua concorrência), poderá, com os seus pontos, freqüentar o mesmo curso em outra universidade de outro estado. Mas a questão não é tão simples assim como se apresenta. Isso porque a ida desse estudante para outro estado com certeza vai depender de suas condições de renda para garantir sua permanência em determinada localidade. Levando-se em conta a atual capacidade das políticas de assistência estudantil nas universidades públicas tem para oferecer aos candidatos que passaram pelo SISU encontramos mais dificuldades ainda, pois elas mal dão conta da demanda interna já existente. E pouco tem visto por parte do governo para atuar na reversão desses problemas. Os investimentos são insuficientes e ainda recentemente a presidente Dilma anunciou uma política de austeridade fiscal e corte de gastos.
Outro debate que precisamos ficar atentos: as políticas de cotas
Talvez o debate sobre cotas seja um dos mais espinhosos para a sociedade brasileira. Existem várias posições favoráveis e desfavoráveis a essa política afirmativa, mas que se encontram dispersas desde setores mais conservadores até os mais progressistas. Por parte do governo programas como o PROUNI, REUNI e recentemente o SISU contempla e propõe políticas afirmativas destinando parte das vagas nas universidades para cotas sociais para estudantes negros, indígenas e de escolas públicas. Mas só pelo fato de contemplarem políticas afirmativas não significa diretamente que estão democratizando e universalizando a educação. Por tudo que foi exposto até agora acreditamos que não. Nesse sentido um esforço para situar “quem é quem” nesse debate precisa ser realizado para não acabarmos inclusive sendo “engolidos” pelos nossos inimigos. Sabemos que até os organismos internacionais que estão a serviço dos interesses de classes dominantes também propõe política de cotas como uma racionalização ao acesso que não seja universalizante. Com foi exposto, acreditamos que o atual governo não foge muito do receituário político-econômico emanado por esses organismos internacionais inclusive no que diz respeito à educação. Ao mesmo tempo a luta por cotas é uma bandeira legítima levantada por movimentos sociais como a dos negros e dos estudantes de escolas públicas o que joga mais complexidade na forma em que devemos nos posicionar, pois se trata de uma orientação política que visa à reparação histórica desses sujeitos sociais. Acompanhamos também com certo temor a própria reação do Poder Judiciário no Brasil que traz características que refletem os frutos e os aperfeiçoamentos ideológicos de uma sociedade historicamente racista e que muita das vezes vem se colocando de forma contrária a política de cotas (como no caso do PAAES).
Sabemos que a história brasileira é marcada por um processo de desigualdades sociais originado por um modelo de exploração colonial escravista. Em se tratando do processo de divisão do trabalho inaugurado nesse período o critério de raça foi um de seus balizadores. Isso remete a uma estrutura em que as colônias foram marcadas por um amplo jogo de relações entre diferentes povos e culturas. A chegada do europeu fundou um conjunto de identidades baseadas na idéia de raça com a finalidade de garantir o processo colonizador na divisão social do trabalho com vistas à expansão do capitalismo mercantil. Percebe-se que o processo de colonização está ligado diretamente ao trabalho não remunerado (escravo) e as raças dominadas (índio, negro) o que mostra as origens de nossas diferenças sociais. E não nos enganemos que isso está intimamente ligada com a estruturação em classes da sociedade brasileira.
Nesse sentido é claro a legitimidade que os movimentos sociais dos negros e indígenas reivindiquem ações afirmativas no campo da educação que corresponde ao campo em que mais notamos as diferenças sociais e raciais, inclusive se considerar que a maior parte da população pobre do país corresponde a essas populações.
A defesa por cotas sociais ou raciais podem corresponder mais a um contexto em que “contradições principais” e “contradições secundárias” remetem a um conjunto complexo em que questões imediatas como as cotas ganhem necessidade de urgência na pauta dos movimentos do que a luta pela universalização da educação. Isso pode gerar inclusive uma cisma dentro do próprio movimento pela educação.
Devemos nos atentar que existe um consenso elaborado sobre o tema de que as cotas sociais e raciais no ensino superior são insuficientes e não poderão inverter a dinâmica decadente de um país marcado pelo capitalismo periférico. Defender as cotas só pode fazer sentido se almejarem em um futuro próximo o seu próprio fim com vistas à universalização da educação. Mas como elas podem fazer sentido como componente tático na luta estratégica por uma educação pública para todos (as)? Acreditamos que ela só faz sentido se essas medidas dirigirem-se para solução da perversidade das desigualdades sociais criadas por uma lógica societal capitalista que se utiliza das diferenças para explorar trabalhadoras e trabalhadores com vistas à acumulação e expansão do capital que subordina as necessidades humanas. Isso não está presente nas atuais políticas afirmativas.
Podemos garantir a entrada por cotas sociais e/ou raciais a entrada de vários jovens principalmente oriundos de escolas públicas. Mas como está o atual estado das coisas (status quo) não vamos solucionar o problema de que tem acesso aqueles que estiverem mais bem preparados. No caso, ainda vamos reproduzir, só que do ponto de vista do interior das camadas mais populares, uma diferenciação em que aqueles que conseguirem se preparar melhor, por exemplo, pagando um curso pré-vestibular, vão obter êxito no acesso ao ensino superior. Ainda vai existir um grande contingente excluído do ensino superior. Os índices de desigualdade social ainda não serão alterados. Apenas corremos o risco de criar um estatus ilusório que crie um comodismo nas camadas populares e manter um sistema de ensino ainda seletivo e excludente. Defender a política de cotas ainda exige outra luta articulada que é o investimento massivo de recursos em todos os níveis de ensino, principalmente no ensino básico.
Diante deste contexto, qual devem ser as propostas?
Entendemos que para o fato que culminou essa reflexão exige do Movimento Estudantil uma resposta com propostas de ação e que devam extrapolar o caráter da denúncia. Sendo assim nosso coletivo propõe os seguintes pontos que devam balizar a mobilização:
· Garantia imediata da reserva de vagas oferecidas pelo PAAES para estudantes oriundos de escolas públicas.
· Manutenção do PAAES até que se discuta de maneira democrática com vários fóruns que envolva todos os seguimentos da universidade, escolas públicas, movimentos sociais e sindicatos do setor da educação, sobre os rumos do processo seletivo na UFU.
· Fim do processo seletivo atual do vestibular. Pela reformulação nas formas de acesso ao ensino superior utilizando-se do gozo da autonomia universitária.
· Não adesão da UFU ao sistema unificado de avaliação ENEM/SISU.
· Em defesa do aumento no investimento da educação. Pela pauta dos movimentos sociais do investimento de 10% do PIB no setor.
· Por uma redefinição do projeto de expansão das universidades públicas que garanta maiores patamares de qualidade para o ensino, pesquisa e extensão.
· Aumento nos investimentos em políticas de assistência estudantil como moradias, creches, atendimento médico e odontológico, bibliotecas e restaurantes universitários.
· Fim dos cursos pagos oferecidos pela UFU.
· Por uma educação 100% pública em todos os seus níveis.
E como deve ser a forma para termos êxito em nossas reivindicações?
Tendo acordo no que Plínio de Arruda Sampaio escreveu em seu livro “Construindo o Poder Popular” acreditamos que existam seis condições que devem orientar o êxito de nossas reivindicações:
· O primeiro refere-se às forças com as quais os estudantes contam para conseguir o que desejam;
· O segundo consiste na determinação do nosso objetivo final (universalizar a educação superando as desigualdades sociais) e dos vários objetivos menores que precisarão ser atingidos, antes de conseguir o objetivo final;
· O terceiro está relacionado no exame da questão dos adversários que os estudantes têm de enfrentar;
· O quarto refere-se ao estudo dos aliados que os estudantes precisam conseguir para aumentar suas forças;
· O quinto examina o que se necessita conhecer a respeito da reivindicação de forma que não haja equívocos na condução da ação;
· O sexto refere-se na divisão de tarefas entre todos os participantes da mobilização.
Nenhum comentário:
Postar um comentário